Por onde passa o bem viver?

Esses dias vivi uma experiência, uma das muitas que a PJ proporcionou na minha vida, dessas de desestabilizar, tirar do conforto e fazer você partir rumo ao desconhecido; ampliar a visão para olhar além do perímetro que o cerca. Como diz a Eliane Brum em ‘A vida que ninguém vê’: "Olhar dá medo porque é risco. Se estivermos realmente decididos a enxergar não sabemos o que vamos ver".
Foram umas longas sete horas de viagem de ônibus ouvindo conversas infindáveis que ecoavam pelo corredor e vendo gente que subia e descia em cada cidade com seus olhares, expectativas, esperas, ou não. Quantas histórias cada pessoa carrega consigo nas suas sacolas, malas, mochilas, na vida!
No destino final, no “porto” onde o ônibus “atracou”, um barco e muitas vidas jovens carregadas de expectativa pela viajem de barco, pelo encontro, pelos encontros, pelo desconhecido. Se lançar no rio que encontra com o mar; se lançar no desconhecido pra se conhecer. O barco foi rasgando o rio. Depois da euforia e novidade da viajem e do esgotamento momentâneo das selfies, a contemplação: o mangue, os siris na margem do rio, a vida que acontece dinâmica.
Outro porto nos acolhe. Com menos estrutura, o reflexo do afastamento do (des)envolvimento. Um tamarineiro florindo e os pescadores de caranguejo contabilizando a pega do dia pra vender na cidade, isso não antes de passar pelo atravessador que, certamente, ganhará mais que eles, ajudam a compor o cenário. Mais uns 20 minutos de carro e chegamos ao nosso destino final: a comunidade da Torta já tinha se organizado pra acolher aquele povo jovem que vinha de fora. Já havia uma espera. Esperar é preparar o coração. Organizar a casa. Dar o melhor que se tem.
Na celebração inicial na casa de farinha, local de encontro, de resistência e de vida da comunidade, o povo nos conta a história daquele lugar e da luta por direitos. A casa de farinha é o lugar onde se leva a colheita da mandioca. Lá, ela é descascada, triturada e vira goma (polvilho), farinha e tapioca. Tudo isso acontece em um grande mutirão. É a partilha na prática. Como a água de coco que bebemos e a tapioca que comemos ao final da celebração. Comunhão. Pão repartido com todos/as, e não só com uma meia dúzia “preparada”, como acontece nas nossas celebrações dominicais. E se aquela tapioca e a água de coco não eram corpo e sangue... nada mais era ou será.
... e o bem viver?
Acho que ali é o início de um modelo de bem viver que há tanto tempo a gente fala ou escuta falar, que tentamos construir ou vemos nossos vizinhos construindo. A sociedade da gente que engatinha uma vida em harmonia com o ecossistema, porque se entende parte dele.
Hoje, mais do que nunca, está claro pra nós que esse modelo de sociedade não se sustenta mais. Não é discursinho dizer que precisamos urgente rever o modelo de economia ao qual estamos submersos. Que não dá pra falar de desenvolvimento sustentável pra amenizar o ônus das nossas ações, porque não há modelo sustentável atrelado ao desenvolvimento. E que esse sistema político... bom, esse sistema politico fala, grita, ensurdece por si só, dispensa comentários.
Mas a gente não chega no teko porã, antes sem rever a nossa contribuição para esse modelo de sociedade que está estabelecido e ante a sociedade que queremos estabelecer. O bem viver, que não é utopia, mas uma possibilidade real que perpassa o ecossocialismo e a discussão sobre Estado e economia, solidariedade, sustentabilidade... nunca será concreto se a mudança que está dentro de nós não romper as camadas dos nossos egoísmos e individualismos diários e se materializar em ações concretas.
Se nós, que falamos nisso, e dizemos acreditar nisso, pelo menos eu acho, não começarmos a mudar, quem vai...? A gente ainda se apega a coisas pequenas que tem dimensões gigantescas na vida das pessoas. Basta ver o excesso de zelo nos nossos cultos, que distancia as pessoas, adoece a gente. Quantas pessoas doentes estão dentro das nossas igrejas?! Quantas brigas por poder estabelecemos todos os dias?! Quanta gente ferida deixa os nossos espaços?!
Falamos do bem viver, mas não conseguimos estabelecer outro modelo de economia que não pautado pela arrecadação nas barracas, bingos, leilões, festas e álcool nos nossos espaços eclesiais. A gente reparte o pão, mas vende. E vende caro. Pão que gera fome. E vai continuar gerando com a insistência desse modelo.
Pautamos o fim do machismo e da homofobia, falamos da necessidade do feminismo, da sororidade, do direito que cada indivíduo/a tem sobre seu próprio corpo, mas está sempre na ponta da nossa língua a pergunta: e fulano/a será que gosta de homem ou de mulher? Quando é que vai se decidir? Na comodidade dos nossos círculos de amizade continuamos com a mesma escrotidão de sempre. Repetindo os mesmos discursos, mas posando de desconstruído/a nas redes sociais e nos espaços comuns.
O bem viver passa por cada um nós, pelos nossos grupos, pela comunidade da Torta, na partilha que faz na casa de farinha; pelos portos onde atracamos seguro o barco dos nossos sonhos e da nossa vida; por uma sociedade, e não igrejas, que pensam e constroem sem atravessadores, de caranguejos ou de vida.
*Thiago Silveira, jornalista. Assessor da Pastoral da Juventude da Arquidiocese de Fortaleza e participante do Cebi-CE.